Figueira da Foz

Empregadas de limpeza<br>homenageiam Marcel Duchamp

Manuel Augusto Araújo

O pequeno burguês é, como o historiador Raumer,
Composto por dois elementos: de uma parte e da outra.
Assim se revela nos seus interesses económicos e por essa razão
na sua política, nas suas concepções religiosas científicas e artísticas.
Assim se revela na própria moral, assim se revela em tudo.
É a contradição viva.
Se, além disso, for como Proudhon, um homem de espírito, aprenderá depressa
a fazer malabarismos com as próprias contradições e a transformá-las,
segundo as circunstâncias, em paradoxos surpreendentes e espalhafatosos,
aqui escandalosos, acolá brilhantes.
Em indivíduos destes subsiste apenas um móbil, a vaidade.
Karl Marx, Carta a Schweitzer, de 24 de Janeiro de 1865



Figueira da Foz, Centro de Artes e Espectáculos (CAE), em exposição um lavatório com um canto partido e os pedaços estilhaçados no chão, escultura de Jimmie Durham «As Frases», avaliada em 27 000 euros!
As empregadas da limpeza olham para os cacos no chão, interrogam-se se são para deitar para o lixo. Alguém decide que sim, que é lixo. Acção: pá e vassoura e vai tudo para o contentor. Tudo não! O lavatório com o canto partido fica no mesmo sítio.
Soam campainhas de alarme, a escultura está amputada. Quanto tempo ficou o lavatório sozinho sem os seus cacos? Uma questão que seria interessante conhecer. O administrador do CAE, não faz comentários, informa que está a decorrer um inquérito para apurar responsabilidades. Coisa interessante para aumentar o nosso conhecimento seria ter acesso às actas do inquérito. Devem conter diálogos fascinantes.
O Instituto das Artes, proprietário da obra de arte, recolhe-se no silêncio. Mais afirmativo Delfim Sardo, comissário da exposição, considera a situação insólita: «Tivemos o cuidado de informar a equipa de limpeza que estava no local quando montamos a exposição que aquilo (cacos) fazia parte da obra.» Provavelmente esqueceu-se que as equipas de limpeza são variáveis. Ou se calhar não verificou se a equipa de montagem tinha colocado aquilo (cacos) na sua posição original com rigor absoluto, o que a não acontecer dificultava o entendimento exacto da obra e introduzia um ruído que se podia tornar insuportável, no frutuoso diálogo entre o objecto agredido e os estilhaços resultantes da agressão. A obra de arte tornava-se incompreensível, pelo que os cacos deixavam de lhe pertencer, reduziam-se à sua condição de cacos, arriscando-se prosaicamente a ir parar ao caixote de lixo, como foram. Este cenário, mais que provável, justifica a recusa da companhia seguradora em assumir a responsabilidade pelos prejuízos causados. A obra de arte exposta já não corresponderia à obra de arte segura. A metafísica que envolvia lavatório e seus cacos, tal como constava na apólice, deixara de existir por defeito de montagem. As empregadas de limpeza, no mesmo passo, ficavam também ilibadas do atentado à arte.
Insensível a essa magna problemática, Jimmie Durham exige a reposição integral da sua obra à empresa de limpeza. Há que indemnizar o artista e reconstruir a obra de arte. Como? Não se sabe mas o mais provável e lógico é terem comprado outro lavatório e partido um canto! A dúvida é quantos lavatórios foram necessários até conseguir reconstituir exactamente a aura da obra original? Se assim foi quantas obras de arte foram, inadvertidamente, parar ao lixo? Se assim não foi e tudo se resolveu à primeira martelada porque não ter resolvido tudo, sem intermediários, comprando um lavatório semelhante e zás, cacos no chão! Ou será que o fundamental é o gesto da martelada e a mão que empunha o martelo para assim justificar o valor atribuído à obra de arte? Entre o lavatório original e o lavatório que o substituiu, Jimmie Durham embolsa certamente uns milhares de euros (quantos?) depois de chegar a acordo com a empresa de limpezas para construção de uma nova peça idêntica à destruída (como disse?).
A empresa noticia que vai dar aulas de formação aos seus empregados para prevenir casos futuros. Será muito interessante conhecer os conteúdos dessas aulas de formação e quem as irá ministrar. É que, quando aprenderem e perceberem o que foi o dadaísmo e o que Marcel Duchamp queria de facto significar quando expôs o urinol, as empregadas de limpeza vão saber que ao atirar os cacos para o lixo prestaram uma veemente homenagem ao Movimento Dádá e a Marcel Duchamp. A partir do momento em que adquirirem essa consciência não há Jimmies Durhmam’s nem comissários Sardos que resistam à fúria das vassouras impregnadas de fervor dadaísta varrendo burgueses filistinos, seus epígonos artísticos, obras de arte e palavrório opaco que sustentam o negócio. O saber e o conhecimento são sempre uma fonte de perigo.
Em Nova Iorque, Marcel Duchamp joga xadrez com Man Ray. Ao ver passar mais um lavatório com um canto partido, indigna-se e comete um erro fatal, vai sofrer o xeque-mate que lhe andam a dar os durham-sardos.
Erza Pound escreve no Canto XLV: (…) com usura/ (…) pintura alguma é feita para ficar/ nem pra ela conviver/ só é feita para vender/e vender depressa (…) a usura é uma peste, usura/ engrossa a agulha lá nas mãos da moça/ E só pára a perícia de quem fia. Pietro Lombardo/ não veio via usura/ Nem Piero della Francesca; Zuan Bellini não pela usura/ nem foi pintada «La Calunnia» assim. Angélico não veio via usura; nem veio Ambrogio Praedis (…)


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